Entre Realidades (Horse Girl): esquizofrenia paranoide ou conspiração alienígena?

Artigo escrito pelo Especialista em Sociologia e em Educação Roberto Guimarães e por mim.



AVISO: o texto abaixo contém Spoilers.

Entre Realidades é um filme complexo e que tem gerado bastante discussão nas redes sociais virtuais pela aparente multiplicidade de interpretações possíveis. Narra a vida de Sarah, uma mulher solteira e com dificuldades de socialização cuja rotina se resume praticamente ao trabalho numa loja, às visitas a seu antigo cavalo e ao assíduo acompanhamento de sua série de TV predileta. 

Conforme se desenrola a pacata vida da personagem, estranhos acontecimentos começam a ocorrer e confundem o espectador quanto à sua veracidade. Entre sonhos e situações inusitadas, muito do que se passa com Sarah parece fantasia e a leva a questionar sua sanidade. Na ânsia de encontrar uma explicação, ela começa a acreditar que é um clone de sua avó, pela suposta semelhança entre elas, e que está sendo perseguida por alienígenas que a estão utilizando como parte de um projeto de controle da humanidade.

Para avançarmos em nossa análise, precisamos falar sobre o conceito de esquizofrenia paranoide. Este transtorno pode ser resumido como uma cisão do psiquismo do indivíduo com a realidade, ou seja, a experiência do indivíduo – aquilo que ele sente, percebe, reflete – não necessariamente está de acordo com o que de fato acontece em seu entorno. O sujeito passa a sofrer alucinações, sejam visuais ou não, e se sente frequentemente perseguido de maneira paranoica, não condizente com os níveis de ameaça ambientes. Por exemplo, pelo aspecto cognitivo, o indivíduo processa em sua memória operacional – aquela que mantém presentes à consciência as informações importantes para a solução de determinada situação ou pensamento – dados que não foram captados na situação que está vivenciando e ou que não se relacionam com ela, criando a “fantasia”. Vale reforçar que o indivíduo não tem como distinguir facilmente entre as informações que recebe da experiência imediata e aquelas “projetadas” indevidamente pelo cérebro, ou seja, as alucinações são reais para quem as vivencia. 

Um transtorno que promove alterações tão severas no processamento cerebral pode ser favorecido tanto por fatores genéticos como relativos à experiência emocional da pessoa. Dependendo do grau de intensidade, vivências traumáticas, por exemplo, podem “sobrecarregar” os sistemas neurais de forma a causar tal disfunção no funcionamento psíquico. Quando observamos o passado de Sarah, verificamos que a esquizofrenia é uma justificativa plausível para o filme. Sua avó era esquizofrênica, o que coloca na balança o favorecimento genético. Há um ano, Sarah encontrou sua mãe caída sem vida no banheiro. Havia se suicidado como agravamento de um quadro depressivo severo. Aqui encontra-se um fator traumático capaz de se tornar um gatilho para o desenvolvimento do quadro. Quando ela é internada e entrevistada por um assistente social, este alega, inicialmente, tê-la atendido em uma internação anterior da qual ela não se recordava, o que sugere um histórico psiquiátrico.

Outro elemento interessante no filme que reforça a ideia da esquizofrenia paranoide é a personagem com quem a protagonista conversa no sanatório e que aparece em seus sonhos na “sala branca”. Se olharmos a foto em que a Sarah aparece ao lado da mãe e as lembranças da jovem Sarah montando seu cavalo, perceberemos que a adolescente se parece muito com a mulher dos sonhos. Isso sugere que ela não é uma projeção aleatória de Sarah: é a imagem da própria Sarah adulta, ou seja, como ela é na realidade. Tal ideia parece se comprovar pelo fato de que a mulher que aparece na “sala branca” é a única que teve os mesmos sonhos de Sarah, a única que valida suas fantasias. 

O fato do espectador enxergar a Sarah parecida com sua avó está alinhado com a imersão no mundo psíquico da personagem que o diretor propôs desde o início. Tal semelhança, mesmo sendo, então, apenas mais uma fantasia da protagonista, reflete a maneira como ela gostaria de se enxergar e, portanto, quem ela efetivamente vê ao se olhar no espelho. Sua situação de isolamento social e de perdas familiares poderia ter gerado uma necessidade de pertencimento e de identificação figuras de afeto capaz de distorcer a autoimagem desta maneira.  

Muitos poderão refutar alegando que a esquizofrenia paranoide não explica algumas cenas do filme que sugerem a conspiração alienígena. Vamos às principais:

- Por que ela sonha com o senhor que trabalha na loja de encanamentos? A esquizofrenia paranoide pode gerar as alucinações a partir de quaisquer memórias do indivíduo, mesmo que não sejam percepções tão conscientes. O fato do indivíduo trabalhar próximo a Sarah torna muito provável ela já tê-lo visto anteriormente, o que seria suficiente para se tornar elemento das alucinações.

- Por que o assistente social do hospital diz, na primeira entrevista, que já conhecia Sarah de internações anteriores, mas no segundo encontro afirma o contrário? Como falado anteriormente, o indivíduo que sofre a esquizofrenia não consegue distinguir claramente entre o real e o imaginário. Conforme se desenrolam as fantasias, o cérebro procura uma explicação para elas e tende a aceitar mesmo as elaborações menos plausíveis, dado o realismo das alucinações. Por exemplo, se a Sarah, induzida pela série de TV com temática sobrenatural, acredita que é uma alienígena, ela poderá, futuramente, criar ilusões que confirmam essa hipótese, assim como alterar ou suprimir as realidades que a negam. No primeiro encontro, o assistente social afirma ser cético em relação a alienígenas e ao sobrenatural, o que o torna uma ameaça às explicações elaboradas por Sarah. Isso a coloca diante de duas opções: a acreditar na conspiração alienígena ainda mais ou a ter que se aceitar “louca”, como ela mesma diz. 

Diante deste difícil dilema, vemos, na sequência, que Sarah cria uma conversa com a mulher de seus sonhos para confirmar para si a história da conspiração alienígena. Ao final deste diálogo, ela parece entrar num estado catatônico, seu olhar se perde e ela fica aparentemente presa em seu mundo mental.

Assim, acreditamos que a segunda conversa com o assistente social e tudo o que se passou depois existiu apenas em sua imaginação (ela não teria recebido alta do hospital no estado em que se encontrava, tampouco sairia da clínica apenas de meias, entre outros indícios).

- Por fim, a questão mais difícil: o cavalo que a amiga de trabalho de Sarah vê passar no estacionamento da loja não reforça a ideia do loop temporal, uma vez que a protagonista, ao final do filme, conduz seu cavalo por ali, dias depois? É importante notar que a esquizofrenia paranoide produz, muitas vezes, alucinações que contém elementos capazes de expressar emoções intensas, boas ou ruins, que acometem o indivíduo. O cavalo, visitado diariamente por Sarah, é claramente um objeto de afeto muito forte, talvez o único elo concreto que ela possui com sua juventude. Isso quer dizer que ele pode ser elemento recorrente nas alucinações. Assim, não sabemos se, de fato, a amiga viu o cavalo. Ela faz uma cara estranha diante de Sarah e o diretor corta para a imagem do cavalo, o que faz parecer que a amiga viu o animal. 

Porém, seguindo a linha de raciocínio da esquizofrenia, ao se deparar com a cara de estranhamento da amiga, Sarah pode ter criado uma explicação para isso: a imagem do cavalo, imagem esta que viria a se repetir ao final do filme, em que seu universo mental completa a história na qual ela tanto precisava acreditar.